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Discutindo a epidemiologia

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A saúde bucal, parte integrante e inseparável da saúde geral dos indivíduos, tem sido relegada ao completo esquecimento, no caso brasileiro, quando se discutem as condições de saúde da população idosa. Tomamos neste artigo o edentulismo como referencia para se discutir esta questão. Percebe-se que a perda total dos dentes é aceita pela sociedade epelos odontólogos como algo normal e natural com o avanço da idade, o que evidentemente é falso. Os serviços odontológicos públicos possuem extrema limitação de atendimento para crianças e gestantes. No que se refere a adultos, limitam-se a práticas mutiladoras, as quais também caracterizam as ações assistenciais materno-infantil, salvo exceções localizadas, onde por força da participação popular, os poderes locais instituem formas de gestão de serviços mais comprometidas com as reais necessidades da população. No que tange a ações programáticas de saúde bucal voltadas para a terceira idade, estas são praticamente inexistentes em nosso país.

É preciso salientar que o edentulismo configura-se enquanto resultado, ou seja, é um quadro de seqüela derivado de um processo de desgaste do corpo, sendo que, os componentes patológicos deste desgaste se sobrepuseram aos demais. Portanto percebe-se que, quando o edentulismo se faz presente, é porque as medidas de atenção à saúde bucal anteriormente colocadas inexistiram ou fracassaram integralmente. Neste contexto é que se deve criticar, com mais precisão de resultados, os programas odontológicos hegemônicos e, mais precisamente, as formas de acesso ao serviços.

Desta forma é que a prevalência de edentulismo na terceira idade desnuda a ineficiência e a ineficácia das formas de planejamento de programas que encerram em si características excludentes de acesso e estáticas de controle e acompanhamento, características estas inerentes aos chamados programas incrementais (CHAVES, 1960) e sua versão refôlho, o programa de saúde da família (PSF). Este último, além das limitações anteriormente citadas, revela, de forma ainda mais clara, um componente ideológico que ofusca uma necessária definição científica que se deve esperar de um programa circunstanciado, pois a família, objeto principal de atuação desta programação pode ser definida das mais diversas formas, sendo suas definições diretamente relacionadas e, mais do que isto, dependentes das sociedades as quais esta instituição está presente. De qualquer forma nas sociedades atuais, pode-se aceitar que a família é uma instituição privada, autogestacionária e limita-se a si mesma, ou seja, é uma instituição auto-suficiente (HELLER, 1987). Assim, percebe-se que esta forma de programação submete o acesso ao Sistema Único de Saúde a uma instituição de caráter privado, não comunitário e por isso mesmo impede que a universalização, um dos preceitos fundamentais do SUS, se concretize plenamente. Portanto, nota-se que a saúde bucal na terceira idade resulta de vários aspectos que se intercruzam e que provocam o quadro de edentulismo hoje presente.

Sob o ponto de vista epidemiológico aspesquisas no Brasil, que estudem a problemática da saúde bucal do idoso são praticamente inexistentes. A título de ilustração pode-se citar apenas o “Levantamento Epidemiológico em Saúde Bucal”, realizado em 1986 (zona urbana) (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1988), porém deve-se salientar que a faixa etária mais avançada pesquisada, foi de 50 a 59 anos. Mesmo com uma amostra inteiramente urbanizada, os dados do levantamento mostraram condições bastante críticas neste grupo etário: 27 dentes atacados pela cárie por pessoa , com 86% dos dentes já extraídos, e 3% com extração indicada. Do ponto de vista periodontal, um pouco maisde 1% foi considerado sadio , ao passo que 50% eram edentulos e 72% usavam ou necessitavam de pelo menos uma prótese total.

Tomando-se como referencia o extrato de renda familiar mensal, este mesmo levantamento mostra que na faixa que inclui pessoas com 50 a 59 anos e que recebiam mensalmente até dois salários mínimos, apenas 24% alegaram que receberam pelo menos uma vez atendimento odontológico no ano anterior ao levantamento, enquanto que 54% dos examinados nesta mesma faixa de idade e incluídos no extrato de renda familiar mensal que recebiam cinco salários mínimos mensais ou mais referiram terem recebido atendimento odontológico no ano anterior .

Já ROSA, FERNANDEZ, PINTO & RAMOS (1992) verificaram que com relação à prevalência de edentulismo e ao uso de prótese, dos indivíduos examinados no domicilio, 65% eram edentulos e destes 76% usavam prótese total superior e inferior, estando portanto com a mastigação reabilitada, em tese. O restante usava apenas prótese superior (13%) ou necessitava prótese total superior + inferior (11%). Em relação aos examinados em instituições, 84% eram edentulos, sendo que, somente 30% usava prótese total superior e inferior e o restante apresentava o aparelho mastigatorio-fonético deficiente. Em relação a outras necessidades protéticas, entre os examinados no domicilio 18% necessitavam de próteses parciais superiores ou inferiores, enquanto nas instituições somente 7% apresentavam esse tipo de necessidade. Portanto, percebe-se que mais da metade e cerca de ¾ dos indivíduos , respectivamente, perderam todos os dentes e apenas 76% no domicílio e 30% nas instituições, usavam próteses totais superior e inferior.

Além disso, um dos estudo mais recentes realizados no Brasil, sendo o primeiro na América Latina com características longitudinais, que acompanhou o segmento de idosos não institucionalizados por quatro anos (PUCCA JR. 1998) constatou que: o fato de ser mulher aumenta em 65% a chance de edentulismo se comparado aos homens; a cada ano de idade, após os 65 anos o acréscimo da chance de não ter dentes é da ordem de 5%;  a cada 100 dólares a mais na renda a chance de não ter dentes sofre uma redução de 7,6%; as patologias crônicas como, a diabetes mellitus não se mostraram associadas ao edentulismo; no primeiro inquérito 54,9% dos idosos apresentaram falta total de dentes e 86,3% usavam próteses, no segundo inquérito a prevalência de edentulismo foi de 56% e de uso de prótese foi de 84,8%. Estes resultados indicam um quadro bastante preocupante e que nos colocam algumas indagações que precisam ser respondidas: porque o edentulismo entre as mulheres mostrou-se superior, sendo que pode-se admitir que as mesmas tem mais acesso aos serviços de saúde bucal do que os homens; por outro lado o presente estudo parece indicar que o quadro de edentulismo na terceira idade no Brasil não se explica pelo aumento da prevalência das doenças crônico degenerativas (ex. Diabetes Mellitus) e parece sim ser mais conseqüência do quadro sócio-economico do que biológico dos idosos. Levantamentos similares realizados na mesma época na Nova Zelândia indicaram um CPO de 28,9 com participação de 87% dos dentes extraídos, enquanto no Reino Unido o CPO encontrado foi 26,4 com participação dos dentes extraídos de na proporção de 96%.(FEDERAÇÃO DENTARIA INTERNACIONAL, 1990). Por outro lado, países que enfatizam ações de prevenção-assistência em saúde bucal, orientadas para os adultos, mostram um quadro odontológico um pouco melhor na terceira idade. Os Estados Unidos, por exemplo, apresentam um CPO-D de 18,37 com participação de 59% dos dentes extraídos, no mesmo grupo populacional (JOHNSON, E.S., 1965).

A comparação dos resultados obtidos no estudo de ROSA, FERNANDEZ, PINTO & RAMOS (1992) e de PUCCA JR (1998) com os obtidos na Nova Zelândia e Reino Unido (em uma população de 60 anos ou mais) cujas necessidades de prótese total foram de 20% e 44% respectivamente (FEDERAÇÃO DENTARIA INTERNACIONAL, 1990), incluindo as próteses que necessitavam substituição, indicam, como no Brasil (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1988), o contínuo crescimento do CPO.

O presente quadro indica que, sem nem ao menos considerarmos a determinação social do processo saúde-doença bucal que é determinada, em ultima instância, enquanto resultante das condições materiais de vida (PUCCA JR, 1999), nenhum fator parece indicar melhorias no presente quadro, pois se podemos considerar que a parcela que hoje constitui o chamado grupo idoso, há alguns anos atrás, devido à falta de tecnologias odontológicas que provocaram uma mutilação massiva, estas mesmas tecnologias que hoje compõem o acervo odontológico não estão à disposição de todos e nem ao menos à maioria das pessoas, pois estima-se que em média  20% da população brasileira tem acesso a serviços de saúde bucal.

Pelo exposto, pode-se notar que, os aspectos epidemiológicos inerentes a saúde bucal do idoso têm sido muito pouco estudados, mesmo em relação à literatura internacional.

Frente a esse quadro, onde temos um aumento demográfico deste seguimento populacional e um relativo vazio de pesquisas e estudos específicos, há que se definir prioridades que orientem uma restruturação do sistema e uma mudança de atitude frente aos problemas de saúde bucal que, em última instância, resultam nestas precárias.

Gilberto Alfredo Pucca Júnior

- Cirurgião-dentista sanitarista

- Mestre em Epidemiologia do Processo de Envelhecimento pela Universidade Federal de São Paulo/Escola Paulista de Medicina

- Chefe do Departamento de Odontologia do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Estadual de Maringá-PR

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